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17/02/2011

Um califa estranho


Conta-se que, certa noite, o califa Harun Ar-Rachid, sofrendo de insónia, mandou chamar seu vizir Jafar Al-Barmaki e seu guarda-costas Masrur e disse-lhes:
- Tenho o coração oprimido. Para me distrair, gostaria de errar pelas ruas de Bagdá e chegar ao Tigre.
Imediatamente, vestiram-se todos de mercadores e andaram até o rio. Lá encontraram um barqueiro velho e disseram-lhe:
- Ó velho, eis um dinar. Poderias levar-nos no teu barco pelo rio para gozarmos o frescor da brisa?
- Qual é o objetivo de vosso pedido, senhores? E qual é a graça? Não conheceis as ordens? "É proibido a grandes e pequenos, jovens e velhos, nobres e plebeus, navegar no Tigre. Quem desobedecer terá a cabeça cortada." Não vedes o barco do califa dirigindo-se para cá?
Surpresos, perguntaram-lhe: "Estás certo de que o próprio califa está no barco?"
- Existe alguém em Bagdá que não conhece o califa Harun Ar-Rachid? Sim, é ele que está no barco com seu vizir Jafar e o portador de sua espada, Masrur. Harun Ar-Rachid, que nunca dera as ordens mencionadas e ficara afastado do rio o ano todo, interrogou Jafar com os olhos.
O vizir, que estava igualmente intrigado, disse ao barqueiro: "Eis dois outros dinares. Leva-nos até aquela sombra para que possamos ver o califa sem sermos vistos."
Após alguma hesitação, o barqueiro levou-os e escondeu-os por baixo de um arco. De lá viram o barco real passar com luzes, movimentos e escravos dançando e cantando.
Num trono de ouro sentava-se um jovem, sumptuosamente vestido, e tendo à sua direita um homem estranhamente parecido com Jafar e, à sua esquerda, o suposto Masrur, segurando uma espada nua. velho, perguntou o califa ao barqueiro, tens certeza de que o califa passeia no rio nesse barco iluminado todas as noites?
- Ele tem feito isso todas as noites nos últimos doze meses.
– Somos estrangeiros nesta cidade, disse o califa, e gostamos de ver coisas curiosas. Se eu te der dez dinares, esperarás por nós amanhã aqui nesta hora?
O barqueiro agradeceu e prometeu ser fiel ao compromisso. Na noite seguinte, os três dignitários voltaram e, levados pelo barqueiro, esconderam-se debaixo do arco e observaram o barco iluminado passar.
- Ó vizir, disse Harun Ar-Rachid, nunca teria acreditado no que estou vendo se me tivessem contado.
E virando-se para o barqueiro, disse-lhe: "Eis outros dez dinares. Segue aquele barco e não tenhas medo de ser visto, pois estamos na escuridão e eles, em plena luz. Gostaríamos de ver aquela iluminação de mais perto e por mais tempo."
Logo depois, viram o falso barco real atracar e seus ocupantes desembarcarem e entrarem num grande parque onde se puseram a cantar, dançar e divertir-se. O califa e seus dois companheiros também desembarcaram, entraram no parque e se misturaram com os outros. Mas alguém reconheceu-os como estranhos ao grupo e levou-os até o pseudo califa.
Perguntou-lhes o califa: "Como e por que viestes aqui?"
Responderam: "Somos mercadores estrangeiros que visitamos esta cidade pela primeira vez. Estávamos passeando e entramos neste parque sem saber que era proibido entrar nele."
- Já que sois estrangeiros, sede nossos hóspedes, disse o estranho califa. Senão, teria que mandar cortar-vos a cabeça.
O convite foi aceite e entraram todos num palácio tão sumptuoso quanto o palácio do califa. A festa prosseguiu com danças, canções, bebidas e guloseimas. No lado direito do salão, uma porta abriu-se e dois negros entraram carregando sobre as espáduas um trono de marfim no qual sentava-se uma jovem escrava tão brilhante quanto o sol. Estava tocando alaúde e cantando: Como pudeste encontrar a paz quando eu estava longe e infeliz? Como pudeste encontrar bálsamo quando eu estava perto e partindo? Ai de mim! Vazio está o quarto perfumado onde espera em vão nossa cama colorida. E vazia está a sala de mármore onde morrem os ecos das canções de amor.
Assim que o falso califa ouviu esta canção, rasgou a roupa e desmaiou. Harun Ar-Rachid e seus companheiros repararam que seu corpo estava coberto de marcas de flagelo.
- Pena que um jovem tão bonito carregue esses estigmas que o denunciam como um criminoso fugitivo, disse o califa. Mamelucos apressaram-se em acordar o jovem e cobri-lo com vestidos tão suntuosos quanto os que rasgara.
- Pergunta-lhe a causa dessas marcas, pediu o califa a Jafar. Mas Jafar opinou que seria melhor não se precipitar para não despertar suspeitas.
- Pergunta, insistiu o califa. Senão teu corpo estará buscando uma cabeça quando voltarmos ao palácio.
Jafar obedeceu. O jovem sorriu e disse: "Já que sois estrangeiros, contar-vos-ei minha história. Ela é tão estranha que se fosse escrita com uma agulha no canto interno dos olhos, serviria de aula a quem gosta de instruir-se."
E começou: "Meus senhores, eu não sou o Comandante dos Fiéis, mas apenas Mohamed-Ali, filho do síndico dos joalheiros de Damasco. Quando meu pai morreu, legou-me muito ouro e prata, inúmeras pérolas, rubis e esmeraldas. Legou-me também edifícios, terras, jardins, lojas e este palácio com seus escravos e escravas. "Um dia, estava na minha loja quando vi apear de um cavalo ele arreado uma jovem de beleza lunar. Entrou acompanhada de seus servidores, e perguntou-me: Não és Mohamed-Ali o joalheiro?" Respondi: "Não sou apenas Mohamed-Ali. Sou também teu escravo." "- Terias algum adorno bonito que possa agradar-me? "Mostrei-lhe os mais belos colares que tinha. Nenhum lhe agradou. Lembrei-me então que meu pai comprara certa vez um colar de inigualável beleza que guardara num cofre especial. Trouxe-o. Assim que a jovem o viu, exclamou: `É este o colar, quanto custa? que sempre procurei. "-Meu pai pagou 100 mil dinares por ele. Se te agrada, terei prazer em oferecer-te de graça. "- Aceito-o pelo preço original e mais 5 mil dinares a título de juros, replicou a jovem com um sorriso. Por favor, traze-o até minha residência e lá receberás o preço. "Mandei meus escravos fecharem a loja e segui-a. "Quando cheguei, esperava-me no seu aposento sem véu, sentada num trono de ouro, com meu colar em volta de seu pescoço. Vendo-a assim, senti meus miolos fundirem e a fortaleza de meu coração desmantelar-se. "A senhora acenou a suas escravas para que saíssem, veio até mim e disse: `Mohamed-Ali, luz de meus olhos, amo-te; e tudo que fiz hoje era apenas uma manobra para trazer-te até aqui. "Deixou-se cair nos meus braços, banhando-me no langor de seus olhos. Beijei-a, enquanto ela empurrava seus seios contra mim. Compreendi que não devia recuar e quis fazer o que tinha que ser feito. Mas no momento em que o menino, já completamente acordado, clamava lascivamente pela mãe, a jovem disse-me: Que pretendes fazer com ele, meu senhor? Guarda-o, porque minha casa não está aberta. Alguém terá que quebrar a porta. Se pensas que estás lidando com alguma mulher comum, desengana-te. Sou a filha de Yahia Ibn Khalid AI-Barmaki, irmã do vizir Jafar. E sou virgem.' ao ouvir essas palavras, meus senhores, mandei o menino voltar para seu sono e desculpei-me por ter desejado que ele participasse da hospitalidade estendida a seu pai. "- Nada tens que lamentar, disse a moça. Chegarás ao que queres, mas pelo caminho legal. Gostarias de casar-te comigo? "Respondi que nada me agradaria mais. Imediatamente, mandou chamar o cádi e as testemunhas e declarou-lhes: Eis Mohamed-Ali, filho do síndico. Pediu-me em casamento e ofereceu-me este colar por dote. Aceitei e consinto. Nosso contrato de casamento foi redigido e assinado na hora e fomos deixados a sós. "Quando a despi, vi que era realmente uma pérola não-furada, um cavalo que nenhum cavaleiro montara. Passei com ela uma noite que resumiu todas as alegrias de minha vida. "Vivemos assim um mês inteiro. No começo do mês seguinte, disse-me certa vez: Devo ir ao hammam por poucas horas. Jura que não te levantarás desta cama até que volte. Jurei, e ela saiu. "Ora, quis o destino que, minutos depois, chegasse uma anciã e me dissesse: `Ó Mohamed-Ali, a senhora Zubaida, a esposa do Comandante dos Fiéis, enviou-me para pedir-te que fosses imediatamente ao palácio, pois deseja falar-te. Respondi: A senhora Zubaida honra-me com esse pedido, mas não posso sair de casa até o regresso de minha mulher. "- Meu menino, disse a velha, aconselho-te a atender sem demora a dona Zubaida em teu benefício, a menos que queiras fazer dela tua inimiga. Sua inimizade é perigosa. Atendi, esperando que minha mulher compreendesse e me desculpasse. A senhora Zubaida recebeu-me com um sorriso e perguntou: Luz de meus olhos, não és o amante da irmã do vizir?' - Sou teu escravo, respondi. "- Em verdade, não exageraram em descrever o charme de tuas maneiras e de tua voz. Estou satisfeita. Mas quero que cantes alguma coisa para mim. "Quando fui libertado e voltei para casa, encontrei minha mulher dormindo. Deitei a seu lado e comecei a acariciar-lhe as pernas. Mas ela me deu um pontapé tão violento na virilha que caí da cama. Traidor perjuro!, gritou. Quebraste teu juramento e foste visitar a senhora Zubaida! Não posso ir ensinar-lhe a não debochar dos maridos de outra mulheres. Por isso, pagarás por ambos.' E chamou o chefe de seus eunucos, o terrível Sauab, e disse-lhe: Corta a cabeça deste traidor."Nesse momento, todos os escravos da casa, que eu costumava tratar com bondade, acorreram e solicitaram sua compreensão: Como iria ele adivinhar que uma simples visita a dona Zubaida iria desagradar-te tanto? Ele desconhecia a rivalidade e inimizade que existe entre vós duas. Por favor, trata-o com clemência.Pouparei a sua vida, concedeu ela finalmente. Mas deixarei no seu corpo uma lembrança indelével de sua traição. E mandou infligir-me as torturas de que vedes os vestígios. "Quando me restabeleci, vendi tudo que tinha, comprei esse grande barco e quatrocentos escravos e escravas, disfarcei-me de califa e entreguei-me à alegria de viver, ao canto e à dança. Passei assim um ano inteiro, tentando esquecer as conseqüências que sofri por ter-me intrometido sem querer numa briga de mulheres”.Após ouvir esta história, o califa voltou para seu palácio, preocupado em encontrar um meio de reparar a injustiça feita àquele homem bom. No dia seguinte, revestido de sua autoridade, mandou vir Mohamed-Ali e disse-lhe: "Gostaria de ouvir de tua própria boca a história que contaste ontem à noite a três mercadores estrangeiros." Surpreso, Mohamed-Ali repetiu a história. Perguntou-lhe o califa:
"Ainda amas a tua mulher e a queres de volta?"
- Tudo que recebo das mãos do califa é bem-vindo.
Então disse o califa a Jafar: "Traze-me tua irmã."
Quando a mulher chegou, disse-lhe o califa: "Ó filha de Yahia, nosso fiel emir, eis Mohamed-Ali. O que passou, passou. Neste momento, quero dar-te a ele como esposa."
- Os presentes de nosso senhor são sempre generosos.
O califa mandou vir o cádi e as testemunhas. Os dois jovens foram casados de novo, e o califa fez de Mohamed-Ali um de seus amigos mais íntimos.

(tradução brasileira)