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17/02/2011

O espantalho aventureiro



Era uma vez um espantalho. De braços abertos, no meio da seara, grande chapéu desabado e camisa ao vento, o espantalho aborrecia-se:
- Estou aqui especado, a guardar o que não é meu e nem me pagam o encargo. Até os pardais já troçam de mim. Vou mas é desempregar-me.
E desempregou-se mesmo, isto é, saltou para o chão, atravessou a seara e foi dar à estrada.
De princípio, custou-lhe a andar. Tinha as pernas trôpegas, claro. Em compensação, podia descansar os braços. Que alívio! Pelo caminho ia pensando: ?Preciso de arranjar trabalho que me dê maquia. Hei-de poupar, porque não sou de grandes gastos e, um dia, com uma bolsa cheia de dinheiro dos meus ganhos, compro uma terra. Uma terra para eu guardar. Uma terra minha."
Ele a perder-se nestes sonhos e uma caravana de saltimbancos a passar.
- Venha connosco - convidaram eles. - Um homem de palha, no nosso espectáculo, é novidade que enche um programa.
Ele foi, que o trabalho não era difícil. Dava uns saltos, fazia umas cabriolas, umas palhaçadas e recebia dinheiro. Com o primeiro ordenado comprou uma bolsa e na bolsa meteu as moedas, que ia ganhando. Nada mau! Mas, um dia, apanhou um susto. Imaginem que o homem-vulcão, que deitava fumo pelos ouvidos e labaredas pela boca, cuspiu, num dos seus ensaios, uma faúlha ainda espevitada, que deitou fogo ao homem de palha. Vá lá que lhe acudiram a tempo, senão a história acabava mesmo aqui.
- Ná! Isto de ser artista de circo tem os seus perigos - disse o chamuscado espantalho, dizendo adeus aos saltimbancos.
No largo da vila, havia um editorial que convocava voluntários para o exército. O espantalho alistou-se.
De arma ao ombro, percorreu caminhos, guerras, países. Foi considerado um herói. Recebeu medalhas e louvores. Pois pudera: as balas atravessavam-no, que o sangue não corria, porque sangue não havia. As lanças trespassavam-no, que dor nunca sentia, porque nervos não havia. Não, nunca caía o espantalho no meio da batalha. Era tal a valentia.
Mas também se desconsolou de ser soldado. Certa vez, no quartel, enquanto dormia, uma mula sem cerimónias meteu o dente ao herói. E se estava com fome.
Assustou-se o soldado com o desplante do animal, que não conhecia os superiores. Pediu a demissão.
E agora, espantalho?
Consultou a bolsa, que sempre trazia à cinta, e contou as moedas, umas grandes, outras pequenas. Dava para comprar uma horta? Dava, desde que fosse pequena - uns palmos de terra com um espantalho ao meio.
Foi o que fez. Colocou-se de braços abertos, a proteger a propriedade, e ali ficou, de grande chapéu desabado, camisa ao vento... Tinha sido espantalho, saltimbanco, mercenário. Voltava a ser espantalho - perdão! - proprietário! Estava feliz? Não sabemos.
- Também agora os pardais troçam de mim - queixava-se ele, quando pouco mais ou menos a história chega ao fim.
Para nós, que aqui o vemos, o fim voltou ao princípio, ao ofício de espantalho. Há muitas histórias assim...


António Torrado