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17/08/2010

No tempo em que os animais falavam



No tempo em que os animais falavam nem calculam a confusão que era! Os lobos imitavam a voz dos homens, os homens imitavam a voz dos lobos, os cães imitavam a voz dos donos, os gatos imitavam a voz dos cães, os ratos imitavam a voz dos gatos e a raposa, do lado de fora das redes da capoeira, imitava a voz das galinhas..
Como, no fim de contas, ninguém tirava vantagens desta situação, porque se está mesmo a ver que a fala dos bichos só servia para eles se enganarem uns aos outros, o leão, que já nessa altura era o rei dos animais, convocou uma grande assembleia para a cerca do seu palácio.
Vieram todos os bichos da Terra, do elefante às formigas, que também falavam, mas sempre em coro, e todos os bichos do ar, do abutre ao noitibó, que era um passarinho de poucas falas. Bichos da água não veio nenhum, por causa da distância e da incomodidade da viagem, mas fizeram-se representar por uns tais que andam cá e lá, ora na água ora em terra - os anfíbios.
O discurso do leão, por ser muito grande, não cabe aqui. Digamos, em resumo, o que ele propunha. Propunha que cada um passasse a falar para si e, quando fosse o caso de meter conversa com outros bichos de famílias diferentes, que se entendesse por sinais. Quanto à nova voz atribuída a cada animal que se informassem junto do corvo. Ele é que sabia. Ele é que ensinava. Ele é que adestrava os patos a grasnar, os cães a ladrar, os pombos a arrulhar, os elefantes a bramir e por aí adiante.
Discursava muito bem o leão, lá isso discursava, e até é pena que, depois disto, só passasse a rugir. Perdeu-se um grande orador.
Toda a bicharada aplaudiu as palavras do rei, palavras que eram ordens.
A assembleia desfez-se e a bicharada em bicha foi saber do corvo qual a voz que lhe tinha sido atribuída.
- Tu cricilas - dizia o corvo ao grilo. - Assim: ?Cri-cri-cri".
- Tu grunhes - dizia o corvo ao porco. - Assim: ?Rum-rum-rum".
E por aí fora.
Depois, foi cada um para seu lado, à sua vida, a ensaiar a nova voz. Era uma chinfrineira de estremecer a Terra.
Num esvoaçar assarapantado, apareceu o papagaio, quando o ajuntamento se dispersava. Não dera conta das horas, deixara-se ficar a dormir e o resultado estava ali - chegava à reunião, enquanto os outros se iam.
- O que se passou? O que ficou decidido? - perguntava ele à esquerda e à direita.
Latidos, mios, cacarejos, guinchos, grasnidos, uivos, balidos, berros, pios, chiados, zumbidos, assobios, bramidos, roncos, arrulhos, regougos foi o que o papagaio ouviu.
- Ai a minha cabeça - queixou-se ele. - Não entendo patavina!
Na clareira, defronte do palácio real, só ficara o burro, de orelhas caídas.
- Senhor burro, explique-me por favor o que se passa - pediu o papagaio. - Só cheguei agora e não consigo perceber nada.
- Nem eu. Nada! Nada! - zurrou o burro. - Iam! Iam! Uns podem falar outros não. Iam! Iam! A mim calhou-me esta voz... Iam! Iam!
E foi-se embora, num trote atarantado.
Atarantado também ficou o papagaio. Ao longo, ecoavam as vozes dos animais, que dantes falavam. Todas diferentes, algumas esquisitas... Quem as entendia?
- Ai que sina a minha! Não sei para que lado me voltar - afligia-se o papagaio. - Que voz me calhou em sorte? A do burro? A da cabra? A da galinha? A da serpente? A do homem? Não sei! Não sei! Não sei!
E ainda não sabe. E nunca saberá. Por isso, como não sabe a voz que lhe coube, o papagaio imita, repete, experimenta, arremeda as outras vozes. Calado é que ele não fica.


António Torrado