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03/01/2010

A lenda do coração materno


Mostra-nos esta famosa lenda árabe a que extremos pode atingir o amor materno. Encontramos a figura de um filho alucinado que se arrepende de um crime infame que praticou contar a própria mãe.

Terminada a prece de Mogreb e confortados com o sublime pensamento de Deus, voltamos, ao padejar da tarde, para o interior da tenda. Ao cruzar a porta, o homem do turbante parou um instante, sorriu para mim, bateu de leve com a mão na testa e exclamou com certo alvoroço:
- Lembrei-me, agora, meu amigo: Mu-á-ssem! Era assim que se chamava a tal cidade. Era esse o nome que me faltava!
- Mu-á-ssem!
Revesti-me de certo ânimo e arrisquei, cautelosamente, como quem pisa o tapete da incerteza:
- Nada vos impede, agora, á ilustre cheique! de nos contar a história famosa que os árabes, nossos irmãos, intitulam A Lenda do Coração Materno. Estamos todos ansiosos por ouvi-la.
- Sim, sim - aquiesceu o cheique com acentuada bonomia. -Farei, com o maior prazer, a narrativa da lenda que vos interessa.
Entrou, abancou-se no estrado e, voltando-se para o poeta Assad Bittar, dono da tenda, interpelou-o num tom afetado de quem declama:
- Repara, á Caid el-Markhan como vai a claridade pelo deserto e pelo céu. O dia, bem sei, está declinando, O Sol já levou para o oásis recurvo do horizonte a sua caravana infinita de luz. Dize-me: ainda se distingue um fio preto de um fio branco? O que achas, ó poeta?
Assad Bittar enrolou o seu belo rosário de coralinas, ergueu o rosto e, repuxando um dos panos da tenda, olhou para a linha sombria das tamareiras. Fez, a seguir, um gesto vago com a mão esquerda e informou:
- Asseguro-vos, ó preclaríssimo cheique ei -m edhaIt , que nAo émais possível, mesmo com o olhar de lince, dentro da réstia da luz que nos envolve, distinguir-se um fio preto de um fio branco!
Tive a impressão de que as frases de Assad Bittar surgiam com a cadéncia suave de uma deliciosa casida.7
Fez-se silêncio na tenda. A noite fria e veludosa caía triste, tristemente, sobre o deserto. O céu repintava-se de mil e unia estrelas. Os beduínos, que vigiavam os nossos rebanhos, acenderam suas pesadas lanternas; muito ao longe ouvia-se o latir alegre dos cães e o uivar lúgubre de um chacal faminto.
O cheique do turbante verde (chefe dos contadores de histórias) nâo se fez de rogado. Ajeitou a manga da túnica, passou o polegar direito pelo queixo, soltou dois pigarros e, depois de ter proferidoo clássico "Em nome de Allah, Clemente e Misericordioso", assim começou:
- Aquele que desce as encostas agrestes de Bení-Hakaan,8 seguindo a trilha esburacada e incerta das caravanas, encontra um lugarejo, outrora verdejante e alegre, que os árabes denominaram Muássem.
Vivia em Muássem (já lá se vão muitos e muitos anos) uma jovem que se chamava Leilah,0 filha de Zeraik, vendedor de incenso. Direi, ainda, que Leilah era extremamente formosa. (Louvado seja Allah que criou a mulher para encanto de nossa vida!). Seus olhos eram negros e babilônicos; suas faces morenas tinham a maciez de uma pétala de rosa ao abrir da manhã. Leilah, ao sorrir, lembrava uma tâmara muito doce, mais doce, talvez, que as tâmaras eI-hamyra, de Saná". Assad Bittar diria, com certeza: "Ao admirar a beleza de Leilah convenci-me de que Deus, Deus também é poeta!"
Nas tardes de al-junurat, antes da quarta prece, Leilah deixava Muássem, atravessava o ToI, e ia (em companhia de Suraia, sua tia mais velha) até o oásis de Ababi/, onde havia boas fontes, vários bazares com amplo sortimento de sensela, ounah e essências raras.
Foi numa dessas excursões a Ababil que Leilah conheceu o jovem Halim ben-Muhib ben-Dhaoud, El Hadj chamír'7das caravanas que percorriam o Iêmen e levavam peregrinos até à Cidade Santa (Que Allah a glorifique para todos os séculos!)
Cabe-nos contar, ó irmão dos árabes!, que a filha de Zeraik apaixonou-se pelo condutor de caravanas. A sua paixão desconhecia 4 limites até no ilimitado. Não foi menor o amor que Leilah fez nascer no coração de Halim.
Graças à complacência e tolerância da velha Suraia, repetiramse amiudadas vezes os encontros dos dois namorados. Irocaram juras de amor. E este tinha a violência do Ouahed ao varrer, sibilante, os areais do Roba-el-KaIi. Lembram-se? Esse vento tudo parece arrasar.
I-Ialim ben-Muhib reafirmou o seu plano. Iria até Meca levar mais uma caravana de trezentos peregrinos, sendo muitos do Egito e alguns até do Sudão. Compromissos muitos sérios, que datavam do ano anterior, o obrigavam a partir. O seu casamento, com Leilah, sua noiva, ficaria marcado para a primeira semana após seu regresso da Cidade Santa.
Aquela viagem de Halim encheu de inquietação o coração de Leilah. Muitos meses ficaria afastada de seu namorado; ele seria obrigado a percorrer o Fialhi e o FhaUatt22 visitar acampamentos, enfrentar bandoleiros e arriscar a vida. E a possibilidade de outros perigos obscurecia o pensamento de Leilah: o seu noivo, durante a longa jornada, percorreria três ou quatro cidades, populosas, cheias de vida e de alegria. Num desses centros, poderia, o intrépido chamír, encontrar uma jovem de formosura estranha, irresistível, que o seduzisse, que o prendesse para sempre. E ela seria roubada. Perderia o amor de Halim! Desesperava-se Leilah ao imaginar que semelhante desgraça pudesse ocorrer no circulo de sua vida.
O que fazer?
Fez sentir a sua tia Suraia as angústias que a afligiam. Disse-lhe Suraia:
- Em Ababil, para além das ruínas, vive agora um feiticeiro prodigioso. O seu nome é Khabil ben-Rahab. Consta que veio de Loheia, no Tehama. Já ouvi dizer que tem feito verdadeiros milagres. Quem sabe se desse feiticeiro Não poderás obter uma baraki-' ou um remédio capaz de prender, para sempre, o teu namorado? Inch' Allah! Quem sabe?
Aceitou Leilah o alvitre de sua tia. Consultaria o velho feiticeirode Loheia, ouviria, talvez, outros encantadores e adivinhos. Esses homens, malabaristas do mistério, ouvem os djins forjam filtros secretos, conhecem talismãs poderosos com os quais é fácil acorrentar um jovem, seja um prfncipe, um valente chamir ou um mísero caravaneiro.
Para além de Ababil, entre as ruínas de uma antiga fortaleza desmantelada, erguera o velho Khabil ben-Rahab, o bruxo, a sua tenda de mágico e curandeiro.
Leilah, sempre guiada pela leviana Suraia, foi recebida pelo mandigueiro! (Queira Allah esclarecer os que vivem no erro e no pecado!)
Qualquer visitante ficaria impressionado com as horripilantes figuras e estranhos objetos que enchiam a tenda de Khabil: caveiras, corujas empalhadas, ossos de avestruz, peles de cobras, dentes de elefantes, ervas venenosas, velhas clinitarras, colares, escudos e objetos de todas as formas. O falso vidente (e a sua voz era vincada de hipocrisia) inquinu:
- O que desejas de mim, formosa menina? Nada mais sou do que um servo entre os teus servos!
Leilah ergueu o véu e circunvagou os olhos pelo interior da tenda. Sentia-se assustada, apreensiva. Tudo ali parecia encantaçâo e esconjuro. Surala, fraca e supersticiosa, não se animou a entrar e permaneceu fora, na sombra da velha muralha. Khabil, o feiticeiro, puxou por um pequeno tamborete e disse à jovem:
- Senta-te aqui, minha filha! senta-te. Fala. Leio a afliçáo em teus olhos. Como poderei ajudar-te?
Cheia de ilusões, a ingênua menina, em voz branda, quase sumida, contou ao infame impostor todo o seu romance de amor. Falou, entre suspiros, da intranqúilidade em que vivia, pois o seu noivo ia viajar peles caminhos de Allah. Demoraria em muitas cidades. Seria assediado por muitas mulheres. E as flechas da seduçáo cairiam sobre ele. Como poderia ela obter um meio certo, seguro, infalível de prender para sempre o amor de seu amado?
- E qual é o nome desse jovem tâo venturoso? - indagou o velho intrujâo.
-Chama-se Halim, é o chanilrda caravana!
- Ah! Ah! Ah! riu o miserável, esfregando as mãos. - Ah! Ah!Ah!
Aquela intempestiva casquinada de riso assustou Leilah. Seu corpo tremia; seu rosto cobriu-se como véu da palidez.
Acudiu o hediondo bruxo, com falsas palavras e desatada hipocrisia, tentando tranqúilizá-la:
- Não te assustes, minha filha, nâo te assustes! Estou rindo, menina, por tua causa; infundados sâo os teus ciúmes e os teus receios. Conheço o teu namorado. Revelo o seu nome por extenso: é o valente chamir El-Hadj Halimben-Muhib ben-flhaoud. E meu amigo. Tudo terminará bem.
Cada palavra do sacripanta trazia o veneno da mentira. O seu envilecido coração enchera-se de ódio ao ouvir o nome de Halim, que ele sabia ser filho de lasmina. Lembrou-se do tempo em que era moço, quando vivia em Loheia. Conhecera a delicada lasmina, filha de um tecelão. Enamorou-se loucamente dela. Procurou-a. Pediu-a três vezes em casamento. Implorou. Humilhou-se. Mas lasmina três vezes o repeliu, para, mais tarde, casar-se com Huhib ben-Dahoud, o peroleiro. E o miserável, ao relembrar fatos perdidos no passado, sentia-se invadido por ondas de furor. Mas chegara, afinal, o momento da vingança, que ele, o noivo repudiado, espumante de cólera, durante 32 anos, acalentara em seu denegrido coraçâo. Huhib ben-Dahoud, o peroleiro, já havia morrido. Mas Iasrnina vivia. E, agora, a namorada de Halim, o filho dileto de Iasmina, vinha procurálo. "Pela desgraça que pesou na minha vida - refletia o sacripanta -vais ter, agora, a minha vingança escrita em sangue na areia clara do teu destino!'
Dominou-se, afinal; fingiu que meditava: com a ponta do dedo riscou figuras cabalfsticas no chão; levantou-se e tomando em uma das mãos cinco pedrinhas de várias cores (depois de fazer com que Leilah as beijasse uma a uma) atirou-as ao acaso, sobre as figuras por ele traçadas. Permaneceu, ainda, calado durante algum tempo, refletindo, fingindo que decifrava um sortilégio qualquer. Era glacial a placidez de seu semblante. E disse, afinal, aflautando a voz, com ar compungido:
- Infelizmente, menina, as pedras do teu Destino, atiradas por mim sobre o signo de Salomão, revelaram algo muito grave. Deploro ver-me obrigado a dizer-te a verdade. A sombra de terrível desgraça paira sobre tua cabeça. Vais perder o teu noivo!
- Vou perdê-lo?
- Sim, vais perdê-lo! - confirmou o intrujão com gravidade. -Ao passar com seus caravaneiros por Medina, ele ficará enfeitiçado por uma jovem chamada Jamile e esquecerá, para sempre, a sua noiva de Muássem.
Fez, neste ponto, uma pausa muito rápida e falou novamente:
- Há, porém, um meio de se evitar essa desgraça.
- O que deverei fazer? - indagou a jovem com a voz abafada e com um leve tremor nos lábios. Respondeu o embusteiro, iluminado por satânico pensamento:
- Estás vendo a pedrinha vermelha, junto á terceira ponta desta estrela? A tua felicidade é indicada claramente por essa pedrinha. Cumpre que exijas de teu namorado (antes que ele parta para Meca) o seguinte: Halim deverá trazer-te o coraçâo de sua própria Mãe!
-O coração de sua Mãe! - repetiu Leilah horrorizada com a revelação do impostor. - Mas isso é um crime. Isso é uma infâmia!
Os olhos negros de Leilah apareciam rorejados de lágrimas.
O bruxo procurou convencer a jovem:
- Não há crime, nem infâmia, quando está em jogo a felicidade de uma noiva apaixonada! tasmina, a mãe de Halim, já se arrasta velhinha e poucos anos permanecerá nesta vida. E tu, minha filha, noiva dileta, tens um futuro imenso diante de ti. E o que chamamos, dentro da magia, um ato sacrificatório. E não vejo, na Linha Sagrada das Cinco Pedras, outra solução para o teu caso. Ou cumpres o que disse, ou perderás, para sempre, o amor de Halim!
E notando que a jovem o fitava estarrecida, olhos muito aberros, cheios de interrogaçôes, o cínico feiticeiro continuou, dando àVOZ, cava e misteriosa, uma inflexão carinhosa:
- Leva este frasco. Contém um filtro milagroso por mim preparado. Dá ao teu noivo algumas gotas desse filtro. E ele ficará meigo, terno, cada vez mais apaixonado por ti, e procurará cumprir Lodos os teus caprichos.
E depositou na mão de Leilah um ftasco escuro que tinha suco de Erva Ma/dita, a erva que obscurece a razão, causa vertigem e que leva o homem aos extremos da loucura.
Tudo se passou de acordo com o plano hediondo imaginado pelo perverso makrouniembusteiro. (Que Cheitá, o Maldito, o castigue!). Leilah fez com que o noivo ingerisse o suco da Erva Maldita e, quando Halim já se achava dominado pela ação da peçonha, disselhe arrebatada:
Queres que eú te ame para o resto da vida? Queres que eu consagre toda a minha existência a ti, somente a ti? Traze-me o coraçâo de tua Mãe!
- Mas, querida... - balbuciou, alucinado, em tom de súplica.
- Que idéia é essa? Que estás pedindo? O coração de minha Mãe?
- Sim - confirmou Leilab em tom rompante - quero o coraçào de tua Mãe!
E impeliu-o suavemente para a estrada. Ela bem sabia que a bondosa Jasmina, mãe de Halim, encontrava-se num oásis próximo, na casa do ben-Dahoud.
O jovem Halim, sob a ação da Erva Maldita, praticou o crime abominável. Arrancou com o punhal o coração de sua Mãe e, tomando-o na mão, partiu a correr pela estrada.
Estranho impulso forçava-o a voltar, o mais depressa possível, para a casa de Leilah, sua noiva. Lá chegando ele diria com sobrancena:
- Aqui está, querida. Pediste o coração de minha Mãe? Ei-lo vivo, sangrando!
O dia vinha nascendo. Os primeiros clarões do Sol iluminavam, ao longe, as tamareiras de Muássem.
E Halim, quando entrou pela estrada que contornava o Tol, levando na mão esquerda o coração materno, tão desorientado se achava que tropeçou nos pedregulhos e caiu.
A queda foi violenta. Halim ergueu-se com dificuldade, gemendo, e levou a mão ao joelho em sangue. Sentia dor intensa pelo corpo.
Ouviu, então, bem perto, uma voz muito meiga, terna, que o interpelava com extrema solicitude:
- Estás ferido, meu filho?
Tomado de verdadeiro pavor, o matricida olhou alucinado para a sua mão, para a sua mão esquerda. Ele bem percebera. A voz viera dali, viera do coração! Do coração de sua mãe!
Aquelas palavras de desvelo, de ternura, foram palavras de sua Mãe, daquela Mãe dedicada, que mesmo depois de apunhala da, mutilada, ainda se interessava, vigilante, por ele, ainda sofria por ele...
- Estás ferido, meu filho?
O veneno da Erva Maldita, naquele instante, deixou de atuar sobre o seu cérebro. Halim caiu na triste realidade e percebeu a extensão infinita do crime ignominioso que cometera. Assassinara sua Mãe, a sua maior amiga, o maior amor de sua vida, para atender a um capricho louco de sua namorada! Ele era um infame; um celerado; um facínora perverso!
Levou aos lábios o coração materno, beijou-o levemente e murmurou:
- Perdoa, Mãe querida! Perdoa o teu filho! Teu desventurado filho estava louco, sob a ação de um veneno, embrutecido pela paixâo, e não sabia o que fazia! Perdoa, Mãe querida.

Lenda árabe