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01/04/2008

Conde Yanno





Chorava a infanta, chorava,
Chorava e razão havia,
Vivendo tão descontente;
Seu pai por casar a tinha.
Acordou el-rei da cama
Com o pranto que fazia:
– «Que tens tu, querida infanta.
Que tens tu, ó filha minha?»
– «Senhor pai, o que hei-de eu ter
Senão que me pesa a vida?
De três irmãos que nós éramos,
Solteira eu só ficaria.»
– «Que queres tu que te eu faça?
Mas a culpa não é minha.
Cá vieram embaixadas
De Guitaina e Normandia;
Nem ouvi-las não quiseste,
Nem fazer-lhes cortesia...
Na minha corte não vejo
Marido que te daria...
Só se fosse o conde Yanno,
E esse já mulher havia».
«Ai! rico pai da minha alma,
Pois esse é que eu queria.
Se ele tem mulher e filhos,
A mim muito mais devia,
Que me não soube guardar
A fé que me prometia».
Manda el-rei chamar o conde,
Sem saber o que faria:
Que lhe viesse falar...
Sem saber que lhe diria.
– «Inda agora vim do paço,
Já el-rei lá me queria!
Ai! será para meu bem?
Ai! para meu mal seria?»

Conde Yanno que chegava,
El-rei a que buscar o vinha:
– «Beijo a mão a vossa alteza;
Que quer vossa senhoria?»
Responde-lhe agora o rei
Com grande merencoria:
– «Beijai, que mercê vos faço;
Casareis com minha filha.»
Cuidou de cair por morto
O conde que tal ouvia:
– «Senhor rei, que sou casado
Já passa mais de ano e dia!»
– «Matareis vossa mulher,
Casareis com minha filha.»
– «Senhor, como hei-de matá-la,
Se a morte me não mer’cia?»
– «Calai-vos conde, calai-vos,
Não vos quero demasia;
Filhas de reis não se enganam
Como uma mulher cativa.»
– «Senhor, que é muita razão,
Mais razão que ser devia,
Para me matar a mim
Que tanto vos ofendia;
Mas matar uma inocente
Com tamanha aleivosia!
Nesta vida nem na outra
Deus me não perdoaria.»
– «A condessa há-de morrer
Pelo mal que cá fazia;
Quero ver sua cabeça
Nessa doirada bacia».
Foi-se embora o conde Yanno,
Muito triste que ele ia,
Adiante um pajem del-rei
Levava a negra bacia,
O pajem ia de luto,
De luto o conde vestia:
Mais dó levava no peito
Cos apertos da agonia.
A condessa que o esperava,
De muito longe que o via,
Com o filhinho nos braços
Para abraçá-lo corria:
– «Bem-vindo sejais, meu conde,
Bem-vinda minha alegria!»
Ele sem dizer palavra
Pelas escadas subia.
Mandou fechar seu palácio,

Coisa que nunca fazia;
Mandou logo pôr a ceia
Como quem lhe apetecia.
Sentaram-se ambos à mesa,
Nem um nem outro comia;
As lágrimas era um rio
Que pela mesa corria.
Foi a beijar o filhinho
Que a mãe aos peitos trazia,
Largou o seio o inocente,
Como um anjo lhe sorria.
Quando tal viu a condessa,
O coração lhe partia;
Desata em tamanho chora
Que em toda a casa se ouvia;
– «Que tens tu, ó querido conde,
Que tens tu, ó vida minha?
Tira-me já destas ânsias
El-rei o que te queria?»
Ele afogava em soluços,
Responder-lhe não podia;
Ela, apertando-o nos braços,
Com muito amor lhe dizia:
– «Abre-me o teu coração,
Desafoga essa agonia,
Dá-me da tua tristeza
Dar-te-ei da minha alegria».
Levantou-se o conde Yanno,
A condessa que o seguia.
Deitaram-se ambos no leito;
Nem um nem outro dormia.
Ouvireis a desgraçada;
Ouvide ora o que dizia:
– «Peço-te por Deus do céu
E pela Virgem Maria,
Antes me mates, meu conde,
Que eu ver-te nessa agonia.»
– «Morto seja quem tal manda,
Mais a sua tirania!
– «Ai! não te entendo; meu conde,
Dize-me, por tua vida,
Que negra ventura é esta.
Que entre nós está metida?»
– «Ventura da sem ventura.
Grande foi tua mofina!
Manda-me el-rei que te mate,
Que case com sua filha.»
Palavras não eram ditas,
Inda mal lhas ouviria,
A desgraçada condessa
Por morta no chão caía.
Não quis Deus que ali morresse...
Triste que ali não morria!
Maior dor que a da morte
A torna a chamar à vida.
– «Cala, cala, conde Yanno,
Que inda remédio haveria;
Ai! não me mates, meu conde,
E um alvitre te daria:
A meu pai me mandarás,
Pai que tanto me queria!
Ter-me-ão por filha donzela
E eu a fé te guardaria.
Criarei este inocente
Que a outra não criaria;
Manter-te-ei castidade
Como sempre ta mantia.»
– «Ai como pode isso ser,
Condessa minha querida,
Se el-rei quer tua cabeça
Nesta doirada bacia?»
– «Cala, cala, conde Yanno,
Que inda remédio teria.
Meter-me-ás num convento
Da ordem da freiraria;
Dar-me-ão o pão por onça
E a água por medida:
Eu lá morrerei de pena,
E a infanta o não saberia.»
– «Ai! como pode isso ser,
Condessa minha querida,
Se quer ver tua cabeça
Nesta maldita bacia?»
– «Fecháras-me numa torre,
Nem sol, nem lua veria,
As horas da minha vida
Por meus ais as contaria.»
– «Ai como pode isso ser,
Condessa minha querida,
Se el-rei quer tua cabeça
Nesta doirada bacia?»
Palavras não eram ditas,
El-rei que à porta batia:
Se a condessa não é morta,
Que então ele a mataria.
– «A condessa não é morta
Mas está na agonia.»
– «Deixa-me dizer, meu conde,
Uma oração que eu saiba.»
– «Dizei depressa, condessa,
Antes que amanheça o dia.»
– «Ai! quem podera rezar,
Ó virgem Santa Maria!
Que eu não me pesa da morte,
Pesa-me da aleivosia:
Mais me pesa de ti, Conde,
E da tua covardia.
Matas-me por tuas mãos,
Só porque el-rei o queria!
Ai! Deus te perdoe, Conde,
Lá na hora da contia.
Deixar-me dizer adeus
A tudo o que eu mais queria;
Às flores deste jardim,
Às águas da fonte fria.
Adeus cravos, adeus rosas,
Adeus flor da Alexandria!
Guardai-me vós meus amores
Que outrém me não guardaria.
Dêem-me cá esse menino,
Entranhas da minha vida;
Deste sangue de meu peito
Mamará por despedida.
Mama, meu filhinho, mama
Desse leite da agonia;
Que até agora tinhas mãe,
Mãe que tanto te queria,
Amanhã terás madrasta
De mais alta senhoria...»
Tocam nos sinos na sé...
Ai Jesus! Quem morreria?
Responde o filhinho ao peito,
Respondeu – que maravilha!
– «Morreu, foi a nossa Infanta.
Pelos males que fazia;
Descasar os bem casados:
Coisa que Deus não queria.»


Romanceiro, Almeida Garrett