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31/01/2008

Pequena Sereia



BEM no fundo do mar a água é azul como as folhas das centáureas, pura como o cristal mais transparente, mas tão transparente, mas tão profunda que seria inútil jogar ali a âncora e, para medi-la, seria preciso colocar uma quantidade enorme de torres de igreja umas sobre as outras a fim de verificar a distância que vai do fundo à superfície.
Lá é a morada do povo do mar. Mas não pensem que esse fundo se compõe somente de areia branca; não, ali crescem plantas e árvores estranhas e tão leves, que o menor movimento da água faz com que elas se agitem, como se estivessem vivas. Todos os peixes, grandes e pequenos, vão e vêm entre seus galhos, assim como os pássaros o fazem no ar.
No lugar mais profundo está o castelo do rei do mar, cujos muros são de coral, as janelas de âmbar amarelo e o teto é feito de conchas que se abrem e fecham para receber a água e para despejá-la. Cada uma dessas conchas encerra pérolas brilhantes e a menor delas honraria a mais bela coroa de qualquer rainha.
Há muitos anos que o rei do mar estava viúvo e sua velha mãe dirigia a casa. Era uma mulher espiritual, mas tão orgulhosa de sua linhagem, que usava doze ostras na cauda, enquanto que as outras grandes personagens não usavam senão seis.
Ela merecia elogios, pelos cuidados que tinha para com as suas netas bem-amadas, todas princesas encantadoras.
No entanto, a mais moça era ainda mais linda do que as outras; sua pele era suave e transparente como uma folha de rosa, seus olhos eram azuis como um lago profundo seus longos cabelos louros como o trigo; todavia, não possuía pés: assim como suas irmãs, seu corpo terminava por uma cauda de peixe.
Durante o dia inteiro, as crianças brincavam nas grandes salas do castelo, onde flores viçosas apareciam entre os muros. Assim que se abriam as janelas de âmbar amarelo, os peixes entravam como fazem os pássaros connosco e comiam na mão das pequenas princesas, que os acariciavam.
Em frente ao castelo havia um grande jardim com árvores de um azul profundo e um vermelho de fogo. Os frutos brilhavam como se fossem de ouro, e as flores, agitando sem cessar suas hastes e suas folhas, assemelhavam-se a pequenas chamas.
O solo se compunha de areia branca e fina, ornado aqui e ali de delicadas conchas e uma luminosidade azul maravilhosa, que se espalhava por todos os lados, dava a impressão de se estar no ar, no meio do azul do céu, ao invés de se estar no mar. Nos dias de calmaria, podia-se perceber a, luz do sol, semelhante a uma pequena flor cor de púrpura que despejasse a luz de sua corola.
Cada uma das princesas tinha seu terreno no jardim, o qual ela cultivava a seu belo prazer.
Uma lhe dava a forma de uma baleia, a outra, a de uma sereia; mas a menor fez o seu em forma de sol e plantou nele flores rubras como ele.
Era uma jovem estranha, silenciosa e pensativa.
Enquanto suas irmãs brincavam com diferentes objectos provenientes dos navios naufragados, ela se divertia olhando para uma estatueta de mármore branco, representando um rapaz encantador, colocada sob um chorão magnífico, cor-de-rosa, que a cobria de uma sombra cor de violeta.
Seu maior prazer era ouvir as estórias sobre o mundo em que viviam os homens. Todos os dias pedia à avó que lhe falasse dos objectos, das cidades, dos homens e dos animais.
Admirava-se, principalmente, de que na terra as flores exalassem um perfume que não havia sob a água do mar e de que as florestas fossem verdes. Enquanto suas irmãs brincavam com diferentes objectos provenientes dos navios naufragados... objectos, das cidades, dos homens e dos animais.
Não podia imaginar como é que os peixes cantassem e saltitassem entre as árvores. A avó os chamava de pássaros: assim mesmo, ela não compreendia.
“Quando você completar quinze anos”, disse a avó, “eu lhe darei permissão para subir à superfície do mar e de sentar-se ao luar sobre os rochedos, para ver os grandes navios passarem e para tomar conhecimento das florestas e das cidades. Você verá um mundo todo novo”.
No ano seguinte a primeira das jovens completaria quinze anos, e, como não havia senão um ano de diferença entre cada uma delas, a mais moça teria que esperar ainda cinco anos para subir à superfície do mar.
Mas uma prometia sempre à outra contar tudo, o que visse na sua primeira saída, pois o que a avo contava ainda era pouco e havia tantas coisas que elas ainda desejavam saber!
A mais curiosa era realmente a mais jovem; muitas vezes, durante a noite, ela ficava perto da janela aberta, tentando perceber os ruídos dos peixes que batiam suas nadadeiras e suas caudas. Olhava bem para o alto e conseguia ver as estrelas e a lua, mas elas lhe pareciam muito pálidas e muito aumentadas pelo efeito da água.
Assim que alguma nuvem as escurecia, ela sabia ser uma baleia ou um navio carregado de homens, que nadavam sobre ela. Certamente esses homens nem pensavam em que uma encantadora sereiazinha estendia suas mãos brancas para o casco do navio que fendia as águas.
Chegou finalmente o dia em que a princesa mais velha completou quinze anos; então ela subiu à superfície do mar, a fim de descobrir o mundo; o desconhecido. Ao voltar, estava cheia de coisas para contar. Oh! disse ela, é delicioso ver, estendida ao luar sobre um banco de areia, no meio do mar calmo, as praias da grande cidade, onde as luzes brilham como se fossem centenas de estrelas; ouvir a música harmoniosa, o som dos sinos das igrejas, e todo aquele barulho de homens e de seus carros!.
Oh! como sua irmãzinha ouvia atentamente!
Todas as noites, em frente da janela aberta, olhando através da enorme massa de água, ela sonhava longamente com a grande cidade, da qual a irmã mais velha falara com tanto entusiasmo, com seus ruídos e suas luzes, seus habitantes e seus edifícios e pensava ouvir os sinos tocarem bem perto dela.
No ano seguinte, a segunda obteve a permissão para subir. Muito contente, ela emergiu a cabeça no momento em que o céu tocava o horizonte e a magnificência desse espectáculo levou-a ao auge da alegria.
O céu inteiro, disse ela ao voltar, parecia ser de ouro e a beleza das nuvens estava além de tudo aquilo que podemos imaginar. Passavam à minha frente, vermelhas e roxas e no meio delas voava em direcção ao sol, como se fosse um longo véu branco, um bando de cisnes selvagens. Eu também quis nadar na direcção do grande astro vermelho; mas de repente ele desapareceu e também a luz rosada que havia em cima das águas e as nuvens desapareceram.
Depois chegou a vez da terceira irmã. Era a mais imprudente, e assim, subiu pela embocadura do rio e foi seguindo o seu curso. Avistou admiráveis colinas plantadas de vinhedos e árvores frutíferas, castelos e fazendas situados no meio de florestas soberbas e imensas.
Ouviu o canto dos pássaros e o calor do sol obrigou-a a mergulhar muitas vezes na água, a fim de refrescar-se.
No meio de uma baía, ela viu uma multidão de seres humanos que brincavam e se banhavam. Quis brincar com eles, mas todos se assustaram e um animal preto – era um cão – começou a latir com tanta força, que ela ficou com muito medo e fugiu para o mar alto.
A sereia jamais pôde esquecer as soberbas florestas, as colinas verdes e as gentis crianças que sabiam nadar, embora não possuíssem cauda de peixe.
A quarta irmã, que era menos afoita, gostou mais de ficar no meio do mar selvagem, onde a vista se perdia ao longe e onde o céu se arredondava em volta da água, como um grande sino de vidro. Percebia os navios ao longe; os delfins brincalhões davam cambalhotas e as baleias colossais lançavam jatos de água para o ar.
E o dia da quinta irmã chegou; estavam exactamente no inverno: e assim ela viu o que as outras não puderam ver. O mar perdera sua cor azul e adquirira um tom esverdeado e por todo lado navegavam, com formas estranhas e brilhantes como diamantes, montanhas de gelo. Cada uma delas, dizia a viajante, parece-se com uma pérola maior do que as torres da Igreja em que os homens são batizados.
Ela se sentou sobre uma das maiores e todos os navegadores fugiam daquele lugar, onde ela abandonava seus cabelos ao sabor do vento.
À noite, uma tempestade cobriu o céu de nuvens.
Os relâmpagos brilhavam, o trovão ribombava, enquanto que o mar, negro e agitado, elevava os grandes pedaços de gelo, fazendo-os brilhar ao clarão dos relâmpagos.
O terror espalhou-se por todos os lados; mas ela, tranquilamente sentada sobre a sua montanha de gelo, viu a tempestade cair em ziguezague sobre a água revolta.
A primeira vez que uma das irmãs subia à superfície, ficava sempre encantada com tudo o que via; mas depois de crescida, quando podia subir à vontade, o encanto desaparecia, ela dizia que lá em baixo era tudo melhor, que nada valia o seu lar. E renunciava bem depressa às suas viagens por lugares distantes.
Muitas vezes, as cinco irmãs, de mãos dadas, subiam à superfície do mar. Possuíam vozes encantadoras como nenhuma criatura humana poderia possuir, e, se por acaso algum navio cruzava o seu caminho, elas nadavam até ele entoando cantos magníficos sobre a beleza do fundo do mar, convidando os marinheiros a visitá-las.
Mas estes não podiam compreender as palavras das sereias e nunca viram as maravilhas que elas descreviam; e assim, quando o navio afundava, os homens se afogavam e somente seus cadáveres chegavam até o castelo do rei do mar.
Durante a ausência de suas cinco irmãs, a mais jovem ficava ao pé da janela, seguia-as com o olhar e tinha vontade de chorar. Mas uma sereia não chora, e assim, seu coração sofre muito mais.
– Oh! se eu tivesse quinze anos! – dizia ela: – Sinto desde já que amarei muito o mundo lá em cima e os homens que ali moram.
E chegou o dia em que ela também completou quinze anos.
“Você vai partir”, disse-lhe a avó e velha rainha: “venha, para que eu faça a sua toillete, assim como fiz a suas irmãs.”
E ela colocou em seus cabelos uma coroa de lírios brancos, em que cada folha era a metade de uma pérola; depois prendeu à cauda da princesa oito grandes ostras, para designar a sua linhagem elevada.
– Como elas me machucam!, – disse a sereiazinha.
– Quando se quer ser elegante é preciso sofrer um pouco, – replicou a velha rainha.
Entretanto, a sereiazinha teria dispensado todos esses luxos e a pesada coroa que levava na cabeça. Gostava muito mais das flores vermelhas de seu jardim; todavia, não ousava fazer observações.
“Adeus!”, disse ela; e, ligeira com uma bola de sabão, atravessou a água.
Assim que sua cabeça apareceu na superfície da água, o sol acabava de se deitar; mas as nuvens brilhavam ainda, como rosas de ouro e a estrela vespertina iluminava o meio do céu. O ar estava doce e fresco e o mar aprazível.
Perto da sereiazinha estava um navio de três mastros; não levava mais do que uma vela, por causa da calmaria e os marujos estavam sentados nas vergas e no cordame. A música e as canções ressoavam sem cessar e, a aproximação da noite, tudo ficou iluminado por cem lanternas penduradas por toda a parte: podia-se acreditar estar vendo as bandeiras de todas as nações.
A sereiazinha nadou até a janela do grande aposento, e, de cada vez que se alçava, percebia através dos vidros transparentes uma quantidade de homens magnificamente trajados. O mais belo deles era um jovem príncipe muito elegante, de longos cabelos negros, com a idade ao redor dos dezesseis anos e era para celebrar sua festa que todos aqueles preparativos estavam sendo realizados.
Os marujos dançavam no convés, e quando o jovem príncipe ali apareceu, cem tiros ecoaram no ar, desprendendo uma luz como aquela do dia.
A sereiazinha mergulhou imediatamente; mas assim que reapareceu, todas as estrelas do céu pareceram cair sobre ela. Ela nunca vira fogos de artifício; dois grandes sóis de fogo rodavam no ar, e todo o mar, puro e calmo, brilhava. Sobre o navio podia-se vislumbrar cada cordinha e melhor ainda, os homens. Oh! como o jovem príncipe era lindo! Ele apertava a mão de todos, falava e sorria a cada um, enquanto a música enviava para o ar os seus sons harmoniosos.
Já era muito tarde, mas a sereiazinha não se cansava de admirar o navio e o belo príncipe. As lanternas não brilhavam mais e os tiros de canhão já haviam cessado; todas as velas tinham sido içadas e o veleiro se afastava a grande velocidade. A princesa o seguiu, sem desviar os olhos das janelas.
Mas logo a seguir o mar começou a agitar-se; as ondas aumentaram e grandes nuvens negras se agrupavam no céu. À distância brilhavam os relâmpagos e uma terrível tempestade se preparava. O veleiro se balançava sobre a água do mar impetuoso, numa marcha rápida. As vagas rolavam sobre ele, tão altas como montanhas.
A sereiazinha continuou com a sua viagem acidentada; divertia-se bastante. Mas assim que o veleiro, sofrendo as conseqüências da tempestade, começou a estalar e a adernar, ela compreendeu o perigo e teve que tomar cuidado para não ferir-se nos pedaços de madeira que vinham até ela.
Por um instante fez-se uma tal escuridão, que não se avistava absolutamente nada; outras vezes, os relâmpagos tornavam visíveis os menores detalhes da cena.
A agitação tomara conta do pessoal do navio; mais uma sacudidela! ouviu-se um grande barulho e o barco partiu-se ao meio; e a sereiazinha viu o príncipe mergulhar no mar profundo.
Louca de alegria, ela imaginou que ele fosse visitar a sua morada; mas depois lembrou-se de que os homens não podem viver dentro da água e que, em conseqüência, ele chegaria morto ao castelo de seu pai.
Então, para salvá-lo, ela atravessou a nado a distância que a separava do príncipe, passando pelos destroços do navio, arriscando-se a se machucar, mergulhou profundamente nas águas por várias vezes e assim pôde chegar até o jovem príncipe, justamente no instante em que suas forças começavam a abandoná-lo e quando ele já fechava os olhos, a ponto de estar para morrer.
A sereiazinha levou para o alto das águas, sustentou sua cabeça fora delas, depois abandonou-se com ele ao capricho das ondas.
Na manhã seguinte o bom tempo voltou, mas já quase nada restava do veleiro. Um sol vermelho, de raios penetrantes, parecia chamar à vida o jovem príncipe, mas seu olhos continuavam cerrados. A sereiazinha depositou um beijo em sua fronte e ergueu seus cabelos molhados.
Achou-o parecido com a sua estátua de mármore do jardim e rezou pela sua saúde. Passou em frente à terra firme, coberta por altas montanhas azuis, no alto das quais brilhava a neve branca. Perto da costa, no meio de uma soberba floresta verde, havia uma cidade com uma igreja e um convento.
As casas possuíam os tetos vermelhos. Em volta das casas havia grandes palmeiras e os pomares estavam cheios de laranjeiras e limoeiros; não longe dali o mar formava um pequeno golfo, entrando por um rochedo coberto de fina areia branca.
Foi ali que a sereia colocou o príncipe com cuidado, tomando cautela para que ele ficasse com a cabeça alta e pudesse receber os raios do sol. Pouco a pouco as cores foram voltando ao rosto do príncipe desmaiado.
Daí a pouco os sinos da igreja começaram a tocar e uma quantidade enorme de moças apareceu nos jardins.
A sereiazinha afastou-se nadando e escondeu-se atrás de umas grandes pedras para observar o que acontecia ao jovem príncipe.
Logo depois, uma das moças passou por ele; no início pareceu assustar-se, mas logo a seguir, foi buscar outras pessoas, que começaram a tratar do príncipe.
A sereia viu-o recobrar os sentidos e sorrir a todos aqueles que tratavam dele; só não sorriu para ela, pois não sabia que o havia salvo. E assim, logo que o viu ser conduzido para uma grande mansão, ela mergulhou tristemente e voltou para o castelo de seu pai.
A sereiazinha sempre fora silenciosa e pensativa; a partir desse dia, ficou muito mais ainda. Suas irmãs perguntaram-lhe o que ela vira lá em cima, mas ela não quis contar nada.
Mais de uma vez, à noite e pela manhã, ela voltou ao lugar onde deixara o príncipe. Viu as flores morrerem, os frutos do jardim amadurecerem, viu a neve desaparecer das altas montanhas, mas jamais viu o príncipe; e voltou cada vez mais triste para o fundo do mar.
Lá, seu único consolo era sentar-se em seu pequeno jardim e abraçar a linda estatueta de mármore que se parecia tanto com o príncipe, enquanto que suas flores negligenciadas e esquecidas, cresciam pelas aléias como umas selvagens, entrelaçavam seus longos galhos nos ramos das árvores, formando uma pequena floresta que obscurecia tudo.
Finalmente essa existência tornou-se insuportável; e ela contou tudo a uma de suas irmãs, que o contou às outras, as quais repetiram a estória a algumas amigas íntimas. E acontece que uma destas, que também vira a festa do navio, conhecia o príncipe e sabia onde estava situado o seu reino.
“Venha, irmãzinha”, disseram as princesas; e, passando os braços por suas costas, carregaram com a sereiazinha pelo mar em fora, e depositaram-na em frente ao castelo do príncipe.
O castelo era construído de pedras amarelas e luzidias; grande escadaria de mármore levava até o jardim; galerias imensas estavam ornamentadas com estátuas de mármore que pareciam vivas. As salas, magníficas, eram ornamentadas de quadros e tapeçarias incomparáveis e as paredes estavam cobertas de quadros maravilhosos.
No grande salão, o sol iluminava, através de uma grande janela de vidro, as plantas mais raras, que estavam num grande vaso e embaixo de vários jactos de água.
Desde então, a sereiazinha começou a ir a esse lugar, tanto durante o dia, como à noite; aproximava-se da costa, ousava mesmo sentar-se sob a grande varanda de mármore que projectava uma sombra em seus olhos; muitas vezes, ao som da música, o príncipe passava por ela em seu barco florido, mas ao ver seu véu branco em meio aos arbustos verdes, pensava tratar-se de um cisne ao abrir suas asas.
Ela ouvia também os pescadores falarem muito bem do jovem príncipe e então ela ficava feliz de lhe ter salvo a vida, o que, aliás, ele ignorava completamente.
Sua afeição pelos homens crescia dia a dia e cada vez mais ela desejava se elevar até eles. Seu mundo lhe parecia muito mais vasto do que o dela; eles sabiam navegar pelos mares com seus navios, subir pelas altas montanhas até as nuvens; eles possuíam imensas florestas e campos verdejantes.
Suas irmãs não podiam satisfazer toda a sua curiosidade, então ela perguntou à sua velha avo, que conhecia muito o mundo mais elevado, o que muito justamente era chamado de país à beira-mar.
– Os homens vivem eternamente?, – perguntou a jovem princesa. – Eles não morrem assim como nós?
– Sem dúvida, – respondia a velha, eles morrem e sua existência é mesmo mais curta do que a nossa. Nós outros vivemos algumas vezes trezentos anos; depois, ao morrermos, nós nos transformamos em espuma, pois no fundo do mar não existem túmulos para receberem os corpos inanimados. Nossa alma não é imortal; depois da morte está tudo acabado. Nós somos com as rosas verdes: uma vez cortadas, não florescem mais! Os homens, pelo contrário, possuem uma alma que vive eternamente, que vive mesmo depois que seus corpos viram cinzas; essa alma voa até o céu e vai até as estrelas que brilham e mesmo que nós possamos sair da água e ir até o pais dos homens, não podemos ir a certos lugares maravilhosos e imensos, que são inacessíveis ao povo do mar.
– E por que não possuímos a mesma alma imortal? – pergunta a sereiazinha muito aflita – eu daria de boa vontade as centenas de anos que ainda tenho que viver para ser homem, nem que fosse por um dia e partir depois para o mundo celeste.
– Não pense em semelhantes tolices – replicou a velha – nós somos muito mais felizes aqui embaixo, do que os homens lá em cima.
– No entanto, chegará o dia em que deverei morrer. Não serei mais do que uma espuminha; para mim, não mais o murmúrio das vagas, nada de flores nem de sol! Não há nenhum meio de conquistar uma alma imortal?
– Somente um, mas é quase impossível. Seria preciso que um homem concebesse por você um amor infinito, que você lhe fosse mais cara do que seu pai ou sua mãe. Então, agarrado a você com toda a sua alma e o seu coração, ele unisse sua mão à de você com o testemunho de um padre, jurando fidelidade eterna, sua alma se comunicaria ao seu corpo e você seria admitida na felicidade dos homens. Mas jamais isso poderá ser feito! O que é considerado mais lindo aqui no mar, que é a sua cauda de peixe, eles acham detestável na terra. Pobres homens! Para serem lindos acham que precisam daqueles suportes grosseiros que chamam de pernas!
A sereiazinha suspirou tristemente, olhando para a ua cauda de peixe.
Sejamos alegres!, diz a velha, saltemos e nos divirtamos durante os trezentos anos de nossa existência; é um lapso de tempo muito agradável e nós conversaremos mais tarde. Esta noite há um baile na corte.
Não se pode fazer idéia na terra de uma tal magnificência. A grande sala de baile era inteira de cristal; milhares de ostras enormes, colocadas de cada lado, nos muros também transparentes, iluminavam o mar a grande distância. Viam-se muitos peixes nadando, grandes e pequenos, cobertos de escamas luzentes como a púrpura, como ouro e prata.
No meio da sala corria um grande rio no qual dançavam os delfins e as sereias, ao som de sua própria voz que era maravilhosa. A sereiazinha era a que cantava melhor e ela foi tão aplaudida, que, por um instante, sua alegria fez com que esquecesse as maravilhas da terra.
Mas dentro em breve ela retornou à sua tristeza, pensando no belo príncipe e na sua alma imortal. Abandonou os cantos e os risos, saiu silenciosamente do castelo e sentou-se no seu pequeno jardim. De lá ela ouvia o som dos coros, que atravessava a água.
Eis que passa, aquele que eu amo de todo o meu coração, aquele que ocupa todos os meus pensamentos e a quem eu desejaria confiar minha vida! Arriscaria tudo por ele e para ganhar uma alma imortal. Enquanto minhas irmãs dançam no castelo de meu pai, eu vou procurar a feiticeira do mar, que eu tanto temi até agora. Talvez ela possa me dar conselhos e ajudar-me.
E a sereiazinha, saindo de seu jardim, dirigiu-se para as rochas escuras onde vivia a feiticeira. Jamais ela seguira por esse caminho. Não havia nem uma flor nem uma árvore. No fundo, a areia cinzenta e lisa, formava um redemoinho.
A princesa viu-se obrigada a atravessar esse terrível turbilhão para chegar aos domínios da feiticeira, onde sua casa se elevava no meio da mais estranha floresta.
Todas as árvores e as rochas não eram mais do que polidos, metade animal metade planta, parecidos com as serpentes que saem da terra.
Os galhos eram braços ondeantes, terminados por dedos em forma de copos, que se mexiam continuamente.
Esses braços agarravam tudo que aparecia à sua frente e não os largavam mais.
A sereiazinha, tomada de pavor, teve vontade de retroceder; todavia, ao pensar no príncipe e na sua alma imortal, armou-se de toda a sua coragem. Prendeu seu cabelo em torno da cabeça, para que os pólipos não a pudessem agarrar, cruzou os braços no peito e nadou assim, entre aquelas horríveis criaturas.
Chegou finalmente a um grande lugar no meio daquela floresta, onde enormes serpentes do mar mostravam seus ventres amarelos. No meio do local estava a casa da feiticeira, construída com ossos de náufragos, e onde a feiticeira, sentada numa grande pedra, dava de comer a um grande sapo, assim como os homens dão migalhas aos passarinhos. Chamava suas serpentes de meus franguinhos e se divertia fazendo-as rolarem sobre seus ventres amarelos.
“Sei o que você deseja”, falou ela ao ver a princezinha; “seus desejos são idiotas; de qualquer forma, eu os satisfarei, mesmo sabendo que eles só lhe trarão infelicidade. Você quer desembaraçar-se dessa cauda de peixe e trocá-la por duas peças daquelas com que marcham os homens, a fim de que o príncipe se apaixone por você, case-se com você e lhe dê uma alma imortal.”
Ao dizer isso, ela deu uma gargalhada espantosa, que fez com que o sapo e as serpentes rolassem no chão.
– Afinal, você fez bem em vir; amanhã, ao nascer do sol, vou preparar-lhe um elixir que você levará para terra. Sente-se na costa e beba-o. Logo a sua cauda se dividirá, transformando naquilo que os homens chamam de duas belas pernas. Mas eu lhe aviso que isso lhe fará sofrer como se lhe cortassem com uma espada afiada. Todo mundo admirará a sua beleza, você conservará sua marcha ligeira e graciosa, mas cada um de seus passos doerá tanto, como se você caminhasse sobre espinhos, fazendo o sangue correr. Se estiver disposta a sofrer tanto, eu poderei ajudá-la.
– Suportarei tudo!, – disse a sereia com voz trêmula, pensando no príncipe e na alma imortal.
– Mas não se esqueça de que, – continuou a feiticeira –, uma vez transformada em ser humano, você não poderá voltar a ser uma sereia! Você nunca mais verá o castelo de seu pai; e se o príncipe, esquecendo-se de seu pai e de sua mãe, não se apegar a você de todo o coração e não se unir a você em casamento, você jamais terá uma alma imortal – No dia em que ele se casar com uma outra mulher, seu coração se quebrará e você não será mais do que uma espuma no alto das vagas.
– Concordo – disse a princesa, pálida como uma morta.
– Nesse caso – prosseguiu a feiticeira é preciso que você me pague; e eu não lhe peço pouca coisa. Sua voz é a mais linda do os sons do mar, você pensa com ela encantar o príncipe, mas é justamente a sua voz que eu exijo como pagamento. Desejo o que você tem de mais precioso, em troca do meu elixir; porque, para torná-lo bem eficaz, eu tenho que jogar dentro dele o meu próprio sangue.
– Mas se você tomar a minha voz, – perguntou a sereiazinha – que me restará?
– Sua figura encantadora – respondeu a feiticeira –, seu caminhar leve e gracioso e seus olhos expressivos, isso é mais do que suficiente para enfeitiçar qualquer homem. Vamos! Coragem! Estire a língua para que eu a corte, depois lhe darei o elixir.
– Seja – respondeu a princesa e a feiticeira cortou-lhe a língua. A pobre menina ficou muda.
A seguir, a feiticeira colocou seu caldeirão no fogo para fazer ferver o seu magico elixir.
– A propriedade é uma bela coisa – disse ela apanhando um pacote de víboras para limpar o caldeirão. Depois, dando um talho com a faca em seu próprio peito, deixou cair seu negro sangue dentro do caldeirão.
Um vapor elevou-se, formando figuras estranhas e assustadoras. A cada instante a velha juntava mais ingredientes e quando tudo começou a ferver, ela acrescentou um pó feito de dentes de crocodilo. Uma vez pronto, o elixir tornou-se totalmente transparente.
“Aqui está”, disse a feiticeira, depois de ter derramado o elixir num frasco. “Se os pólipos quiseram agarrá-la ao sair, basta jogar-lhes uma gota desta bebida e eles se farão em mil pedaços.”
Este conselho foi inútil; pois os pólipos, apercebendo-se do elixir nas mãos da sereia, recuaram assustados. E assim, ela pôde atravessar sem sustos a floresta e os redemoinhos.
Quando chegou ao castelo de seu pai, as luzes da grande sala de danças estavam apagadas; todo mundo dormia, mas ela não ousou entrar.
Não podia falar com eles e logo iria deixá-los para sempre – Parecia que seu coração se partia de dor. A seguir foi até seu jardim, colheu uma flor de cada um dos de suas irmãs, enviou uma porção de beijos ao castelo e subiu à superfície do mar, afastando-se para sempre.
O sol ainda não estava alto, quando ela chegou ao castelo do príncipe. Sentou-se na praia e bebeu o elixir; foi como se uma espada afiada penetrasse em seu corpo; ela desmaiou e ficou estendida na areia como morta.
O sol já estava alto quando ela acordou sentindo uma dor cruciante. Mas à sua frente estava o príncipe encostado a um rochedo, lançando sobre ela um olhar cheio de admiração. A sereiazinha baixou os olhos e então viu que a sua cauda de peixe desaparecera, dando lugar a duas pernas brancas e graciosas.
O príncipe perguntou-lhe quem era ela e de onde vinha; ela fitou-o com um olhar doce e aflito, sem poder dizer uma só palavra. Depois o jovem a tomou pela mão e levou-a para o castelo. Assim como dissera a feiticeira, a cada passo que ela dava, sentia dores atrozes; entretanto, subiu a escadaria de mármore pelo braço do príncipe, leve como uma bola de sabão e todos admiraram o seu andar gracioso. Vestiram-na de seda, sem deixarem de admirar a sua beleza; mas ela continuava muda. Escravas vestidas de ouro e prata cantavam para o príncipe; ele aplaudia e sorria para a jovem.
Se ele soubesse, pensava ela, que por ele eu sacrifiquei uma voz mais linda ainda!
Depois de cantarem, as escravas dançaram. Mas assim que a pequena sereia começou a dançar nas pontas dos pés, quase sem tocar o solo, todos ficaram extasiados. Nunca haviam visto uma dança mais linda e harmoniosa. O príncipe pediu-lhe que não o deixasse mais e permitiu-lhe que dormisse à sua porta, numa almofada de veludo. Todos ignoravam o seu sofrimento ao dançar.
No dia seguinte o príncipe lhe deu um traje de amazona para que ela o seguisse a cavalo. Depois de terem saído da cidade aclamados pelos súditos do príncipe, eles atravessaram prados cheios de flores, florestas perfumadas e alcançaram altas montanhas; e a princesa, rindo-se, sentia seus pés arde-rem.
A noite, enquanto os outros dormiam, ela descia secretamente a escadaria de mármore e ia até a praia, a fim de refrescar os pés doridos na água fria do mar e a lembrança de sua pátria vinha ao seu espírito.
Uma noite, ela viu suas irmãs de mãos dadas; cantavam tão tristemente ao nadarem, que a sereiazinha não pôde deixar de fazer-lhes um sinal. Tendo-a reconhecido, elas lhe contaram como ela havia deixado todos tristes. Todas as noites elas voltavam e uma vez chegaram a levar a avó, que há muitos anos não punha a cabeça na superfície e o rei do mar com a sua coroa de coral. Os dois estenderam as mãos para a filha; mas não ousaram, assim como as irmã, aproximar-se da praia.
Cada dia que se passava o príncipe mais a amava, como se ama uma criança bondosa e gentil, sem ter a idéia de transformá-la em sua esposa. No entanto, para que ela tivesse uma alma imortal, era preciso que ele se casasse com ela.
– Não me ama mais do que a todas as outras? – eis o que pareciam dizer os olhos tristes da pequena muda, quando o tomava nos braços e depositava um beijo na sua fronte.
– É claro que sim – respondia o príncipe – pois você possui o melhor coração de todas; você é mais devotada e se parece com a jovem que eu encontrei um dia, mas que talvez não veja nunca mais. Quando eu estava num navio, sofri um naufrágio e fui depositado em terra pelas ondas, perto de um convento habitado por muitas jovens. A mais moça delas encontrou-me na praia e me salvou a vida, mas eu a vi somente duas vezes. Jamais neste mundo, eu poderia amar outra que não a ela; pois bem! Você se parece com ela, muitas vezes chega mesmo a substituir a imagem dela em meu coração.
Ai de mim!, pensou a sereiazinha, ele ignora ter sido eu a salvá-lo, e a colocá-lo perto do convento. Ama uma outra! No entanto, essa jovem está encerrada num convento e jamais sai; talvez ele a esqueça por mim, por mim que o amarei sem-pre e lhe devotarei toda a minha vida.
“0 príncipe vai-se casar com a linda filha do rei vizinho”, disseram um dia; “está equipando um soberbo navio sob o pretexto de visitar o rei, mas a verdade é que ele vai-se casar com a filha”.
Isso fez a princesa sorrir, pois ela sabia melhor do que ninguém quais os pensamentos do príncipe. Ele lhe dissera: “já que meus pais exigem, irei conhecer a princesa, mas jamais eles farão com que eu a tome em minha esposa. Não posso amá-la; ela não se parece, como você, com a jovem do convento e eu preferiria casar com você, pobre menina abandonada, de olhos tão expressivos, malgrado o seu eterno silêncio”.
E, depois de falar dessa maneira, ele depositou um beijo em seus longos cabelos.
O príncipe partiu.
“Espero que você não tenha medo do mar”, disse-lhe ele no navio que os levava.
A seguir falou-lhe nas tempestades e no mar furioso, nos estranhos peixes e em tudo que se encontrava no fundo do mar. Essas conversas faziam-na sorrir, pois ela conhecia o fundo do mar melhor do que qualquer outra pessoa.
Sob o luar, quando os outros dormiam, ela, então, se sentava na amurada do navio e alongava seu olhar através da transparência da água, acreditando perceber o castelo de seu pai e os olhos de sua avó fixados na quilha do navio. Uma noite suas irmãs apareceram; olharam-na tristemente agitando as mãos.
A jovem chamou-as por sinais e esforçou-se por dar-lhes a entender que tudo ia bem; mas no mesmo instante um grumete se aproximou e elas desapareceram, fazendo crer ao pequeno marujo que ele vira uma espuma no mar.
No dia seguinte o navio entrou no porto da cidade em que morava o rei vizinho. Todos os sinos repicaram, a música enchia a cidade e os soldados, no alto das torres, balançavam as suas bandeiras. Todos os dias havia festas, bailes e noitadas; mas a princesa ainda não chegara do convento, onde recebera uma brilhante educação.
A sereiazinha estava muito curiosa para ver a sua beleza e, finalmente, teve essa satisfação. Teve de reconhecer jamais ter visto uma tão linda figura, uma pele tão branca e olhos negros tão sedutores.
É você!, gritou o príncipe ao vê-la, foi você que me salvou quando eu estava na praia. E apertou entre os braços a sua noiva toda corada. É muita felicidade!, continuou ele, voltando-se para a sereiazinha. Meus desejos mais ardentes se realizaram! Você compartilhará de minha felicidade, pois ama-me mais do que qualquer pessoa.
A jovem do mar beijou a mão do príncipe, embora tivesse o coração ferido.
No dia do casamento daquele que ela amava, a sereiazinha devia morrer e transformar-se em espuma.
A alegria reinava por todos os lados; os arautos anunciavam o noivado em todas as ruas e ao som de suas cornetas. Na grande igreja, um óleo perfumado brilhava nas lâmpadas de prata e os padres agitavam os incensários; os dois noivos deram-se as mãos e receberam a bênção do bispo. Vestida de seda e ouro, a sereiazinha assistiu à cerimônia; mas ela só pensava na sua morte próxima e em tudo o que perdera neste mundo.
Na mesma noite, os recém-casados embarcaram ao som das salvas da artilharia. Todos os pavilhões estavam içados no meio do navio que estava pintado de ouro e púrpura e onde fora preparado um magnífico leito. As velas se inflaram e o navio afastou-se ligeiramente sobre o mar claro.
Ao aproximar-se a noite, acenderam lanternas de várias cores e os marujos começaram a dançar alegremente no convés. A sereiazinha lembrou-se da noite em que ela os vira dançar pela primeira vez. E começou a dançar também, leve como uma borboleta e foi admirada como um ser sobre-humano.
Mas é impossível descrever o que se passava em seu coração; no meio da dança, ela pensava naquele por quem deixara sua família e sua pátria, sacrificando sua bela voz e sofrendo inúmeros tormentos – Essa era a última noite em que ela respirava o mesmo ar que ele, em que poderia olhar para o mar profundo e para o céu cheio de estrelas. Uma noite eterna, uma noite sem sonhos a aguardava, já que ela não possuía uma alma imortal. justamente até a meia-noite a alegria reinou em torno dela; ela própria ria e dançava, com a morte no coração.
Finalmente, o príncipe e a princesa retiraram-se para a sua tenda armada no convés: ficou tudo silencioso e o piloto quedou-se sozinho em frente ao leme. A sereiazinha, apoiando seus braços brancos na amurada do navio, olhava para o oriente, do lado do nascer do sol; sabia que o primeiro raio de sol a mataria.
De repente, suas irmãs saíram do mar, tão pálidas quanto ela mesma; elas nadaram em volta do barco e chamaram por sua irmã que ficara muito triste: os longos cabelos de suas irmãs não flutuava mais ao vento, elas o haviam cortado.
– Nós os entregamos à feiticeira, – disseram elas, para que ela venha em seu auxílio e a salve da morte. Em troca ela nos deu um punhal bem afiado, que aqui está. Antes do nascer do sol, é preciso que você o enterre no coração do príncipe e, assim que o sangue ainda quente cair aos seus pés, eles se unirão e se transformarão numa cauda de peixe. Você voltará a ser uma sereia; poderá descer para a água junto de nós e somente daqui a trezentos anos é que se transformará em espuma. Venha, você ficará alegre novamente. Tornará a ver nossos jardins, nossas grutas, o palácio, a sua voz maviosa será ouvida outra vez; junto a nós você percorrerá os mares i-mensos. Mas não demore! Pois antes do nascer do sol é preciso que um de vocês morra. Mate-o e venha, nós lhe suplicamos! Está vendo aquela luz vermelha no horizonte? Dentro de alguns minutos o sol nascerá e tudo estará terminado para você! Venha! Venha!.
A seguir, com um longo suspiro, elas mergulharam novamente, a fim de irem encontrar-se com a velha avó que esperava ansiosa pela sua volta.
A sereiazinha levantou a cortina da tenda e viu a jovem esposa adormecida, com a cabeça apoiada no peito do príncipe. Aproximou-se dos dois e depositou um beijo na fronte daquele que tanto amara. A seguir, voltou seu olhar para a aurora que se aproximava, para o punhal que levava nas mãos e para o príncipe que pronunciava em sonhos o nome de sua esposa, levantou a mão que empunhava o punhal e ... lançou-o no meio das vagas. No lugar onde ele caíra, pareceu-lhe ver várias gotas de sangue rubro. A sereiazinha lançou mais um olhar para o príncipe e precipitou-se no mar, onde sentiu seu corpo dissolver-se em espuma.
.Nesse instante o sol saiu das vagas; seus raios benéficos caíram sobre a espuma fria e a sereiazinha não sentiu mais a morte; ela viu o sol brilhante, as nuvens de púrpura e em sua volta flutuarem milhares de criaturas celestes e transparentes. Suas vozes formavam uma melodia encantadora, mas tão sutil, que nenhum ouvido humano poderia ouvir, assim como nenhum olhar humano poderia ver as criaturas. A jovem do mar apercebeu-se de que possuía um corpo igual ao delas e que, pouco a pouco, ela se elevava sobre a espuma.
“Onde estou?”, perguntou ela com uma voz da qual música alguma pode dar uma idéia.
“Junto com as filhas do ar, responderam as outras. A sereia não possui uma alma imortal e só pode conseguir uma, através do amor de um homem; sua vida eterna depende de um poder estranho. Assim como as sereias, as filhas do ar não possuem uma alma imortal, mas podem ganhar uma, por meio de boas ações.
“Nós voamos para os países quentes, onde o ar pestilento mata os homens, para levar-lhes o frescor; espalhamos pelos ares o perfume das flores por toda a parte por onde passamos, levamos o socorro e damos saúde. Depois que praticamos o bem durante trezentos anos, adquirimos uma alma imortal a fim de participar da felicidade eterna dos homens.
“Pobre sereiazinha, você esforçou-se da mesma forma que nós; como nós você sofreu e, saindo vitoriosa de suas provações, elevou-se até o mundo dos espíritos do ar e agora depende de você ganhar ou não uma alma imortal, por meio de suas boas ações..
E a sereiazinha, levantando os braços para o céu, derramou lágrimas pela primeira vez. Os gritos de alegria foram ouvidos novamente sobre o navio; mas ela viu o príncipe e sua bela esposa olharem fixamente e melancolicamente para as espumas brilhantes, como se soubessem que ela se precipitara nas ondas.
Invisível ela abraçou a esposa do príncipe, lançou um sorriso aos recém-casados, depois subiu com as outras filhas do ar para uma nuvem cor-de-rosa, que se elevou no céu.


Hans Christian Andersen